Vitor entrou pela pequena porta do apartamento, batendo e pedindo licença, enquanto guardava as chaves no bolso.
- Alguém em casa? Ola?
Do banheiro, por baixo de um zunido alto de um secador de cabelos, ouviu uma voz responder algo que ele não entendeu.
- Está pronta? – perguntou, enquanto ia à direção do quarto. O secador foi desligado. Agora a voz feminina pode ser ouvida bem definida.
- O quê?
- Eu perguntei – disse Vitor sorrindo, enquanto olhava, do marco da porta do quarto, a porta entreaberta do banheiro, sem conseguir ver mais do que a sombra da sua interlocutora – se tu estás pronta.
- Quase. Estou terminando de secar o cabelo! Fico pronta em um segundo!
- Quanto tempo vai demorar esse segundo?
- Ah... Não tenho certeza – voltou a responder a voz.
Ouviu o secador de cabelo ser ligado.
“ok”, disse mais pra si mesmo do que para qualquer outra pessoa.
O secador parou de funcionar novamente.
- Se te apetecer pode comer alguma coisa. A geladeira está bem abastecida - O secador voltou a funcionar antes mesmo que ele pudesse responder algo.
Olhou para a cama desarrumada do quarto, sem realmente prestar muita atenção. Entrou na cozinha, e vasculhou entre alguns CDs espalhados sobre a mesa, ao lado de um CD player que ele nuca vira. Não reconhecendo nenhuma capa ou nome, escolheu um aleatoriamente. Uma voz feminina, muito lentamente começou a cantar uma música que parecia muito triste. Mas com o barulho concorrente do secador do banheiro, era impossível sequer saber qual a língua falada.
Voltou sua atenção para a geladeira. Abriu-a, e deu uma olhada no interior. Depois se abaixou, e começou a realmente estudar suas opções. Entre vários tuppowares com coisas que não podia identificar, acabou por não escolher nada. Levantou-se, fechou a geladeira e percebeu a foto em preto e branco colada no freezer. Nela, sua namorada aparecia sorrindo, olhando por sobre os aros grossos do óculo de grau.
- Onde foi tirada essa foto?
O secador de cabelo voltou a desligar.
- O que?
-Essa foto, na porta da geladeira, onde foi tirada?
-Ah, é do meu gato!
-Só se agora ele precisa de óculos de aro largo! – ele respondeu, rindo.
-Ah, a foto preto e branco?
-Isso.
- É das minhas últimas férias, em São Leopoldo.
- Não sabia que tinha um lago em São Leopoldo!
- Ah, wathever... – O secador voltou a ser ligado.
Olhou a foto demoradamente. Os olhos castanhos, o cabelo preto um pouco mais curto do que ele se lembrava, os aros dos óculos, o cachecol listrado, as pessoas ao fundo, à beira da água.
Então viu algo mais que reconheceu ali.
- Há quanto tempo tu disseste que essa foto foi tirada?
- Ah... Uns cinco meses. – veio a voz abafada pelo som do secador.
**
Caminhava letárgico num inverno particularmente frio, nas docas onde seu pai trabalhava. Gostava de ir até lá nas tardes frias dos fins de semana do meio do inverno. Era um sujeito solitário e quieto, sem muitos amigos, concentrado em tentar encontrar inspiração nas pequenas coisas do dia a dia. Parou para analisar os estivadores conversando à beira de um pequeno navio cargueiro. Alguém atrás de si pediu licença. Perdido como estava em suas divagações, não tinha percebido mais ninguém ali. Virou, e viu a garota de cabelo loiro, trançado numa longa corda largado sobre o ombro, segurando uma câmera fotográfica.
-Ah, desculpe.
Voltou a caminhar para sair do ângulo da câmera.
- não, tu entendeste errado. Eu queria saber se tu podias tirar uma foto minha.
-Ah, claro.
Aproximo-se e pegou a câmera. Ela foi até onde ele estava quando ela lhe chamou a atenção, lentamente, andando de costas. – sabes usar uma dessas?
- Sim, sim – ele respondeu enquanto analisava a máquina, para só então perceber que era analógica.
- tente pegar uma boa parte do navio, tá? Não precisa me deixar centralizada.
Vitor apontou a câmera na direção da garota, tomando cuidado para incluir o nome do barco inteiramente na foto, o que a deixava um tanto deslocada do centro.
- Certo, diga queijo.
- queijo? – ela perguntou com uma expressão de quem não tinha entendido a palavra corretamente.
Ele bateu a foto.
- isso, ficou ótima! – ele disse sorrindo.
Ela começou a rir.
- Ok, fui enganada! Tá, tira outra, sem queijo dessa vez.
- Certo, sem queijo.
Ele voltou a apontar a Câmera para a garota da trança, e ela sorriu um sorriso maroto. Vitor tirou outra foto, exatamente no mesmo ângulo.
- Ok. Pronto.
- Muito obrigada!
- não é muito comum ver esse tipo de câmera por aí, nesses tempos de tecnologia digital – disse ele analisando a câmera.
- Ah, sim, foi um presente do meu pai.
Ela pegou novamente a câmera, olhando com zelo para ela.
- eu sou Vitor – ele estendeu a mão.
-ah, um prazer! Eu sou Rosa! – ela respondeu apertando a mão dele.
- então, Rosa, tu não é daqui, certo?
-Ah, certo. Eu pareço bem deslocada, né?
Ele sorriu.
- Não, só não é muito comum as pessoas daqui virem passear no porto com câmeras fotográficas.
- É, eu sou de Porto Alegre.
- Bom, então que tal conhecer algum café aqui da cidade? – disse Vitor, antes mesmo de entender de onde a frase tinha saído.
Ela pareceu indecisa por um segundo. Olhou séria pra algum lugar perdido um pouco mais alto que o horizonte, por um segundo, depois prestou atenção na câmera em suas mãos, e então, colocando-a num estojo que carregava à tiracolo, olhou pra ele, sorrindo novamente.
- Tá, estou mesmo com fome.
**
-Então, teu pai é fotógrafo.
- Ah, não. Na verdade, ele tinha uma dessas casas que compram e vendem coisas usadas. Ele me deu essa câmera quando eu era ainda bem guria.
- Ah, é? E como era?
- Ah, era bem divertido! Tinha muitas coisas esquisitas, sempre chegando e saindo. O cheiro de mofo me acompanha até hoje!
- Bom, imagino que possas ter lugares piores no mundo pra se crescer.
- É, imagino que sim.
Um momento de silêncio pairou sobre a mesa do bar. Vitor tomou um gole de café, enquanto Rosa mexia distraidamente na câmera com uma mão e segurava o canudo de um milk shake com a outra. Deu-se conta que não fazia idéia de como tinha chegado até ali, e tinha menos noção ainda de que rumo tomar em seguida.
- Então, tu vieste só visitar Rio Grande?
- É, mais ou menos. Eu devo ficar na cidade por umas três semanas. Não conhecia a cidade, e resolvi vir pra um lugar onde não conhecesse ninguém pra curtir as minhas férias.
- Faculdade?
- Não, eu trabalho em um estúdio fotográfico. É da minha irmã mais velha, e eu já trabalho com ela fazem uns cinco anos.
- E é bom trabalhar com ela?
- Ah, eu adoro! Ela é quem tira as fotos, eu só faço as revelações. Na verde, eu praticamente vivo em uma sala escura!
Riram um pouco, cada um olhando encabuladamente para sua bebida.
- Eu não sei. Eu não confio em fotografias. – disse Vitor.
- O que? – ela perguntou meio incrédula, ainda sorrindo um pouco, esperando uma brincadeira.
- Sabe, - Vitor olhou por um momento para o teto, como se procurasse as palavras certas, depois fitou os olhos castanhos de Rosa - centenas de fotografias onde as pessoas sempre aparecem sorrindo. Não importa muito qual o estado de espírito das pessoas, elas sempre sorriem pra uma câmera. Ou fazem algo automático, uma pose pra foto. Não dá pra ver nada além de um sorriso pré-fabricado daquelas pessoas. Ou Fotos de lugares em que elas estiveram, mas de onde elas às vezes nem se lembram, a não ser por essas fotografias. Lugares que elas não pertencem, a não ser naquele momento. Não sei, me parece sempre uma grande encenação, uma felicidade forjada só pra aparecer naquela foto, naquele segundo, e depois a vida segue seu rumo normal.
O silêncio voltou aos dois. Vitor voltou a olhar sua taça de café, enquanto ela continuava a fitá-lo.
- Posso tirar um foto tua?
- O que?
Fora surpreendido com o pedido. Certa melancolia lhe abatera, mas aquele pedido o trouxe de volta à realidade.
- Ah, claro, porque não.
- Ótimo! – Ela pegou a câmera e começou a prepará-la. – Só continua falando.
- Ah... – todas as palavras fugiram dele.
- Me pergunta algo! – disse Rosa, sem tirar os olhos da máquina.
- Ah... Certo... Então, como é a tua casa?
- ela colocou a câmera em posição, à frente do rosto, de modo que ele não podia ver muito mais do que a boca de Rosa falando consigo.
- bom, é uma casa grande, mas um pouco, sabe, atulhada de coisas. Meu pai tem essa mania de levar trabalho pra casa, de uma maneira muito literal!
Ele riu.
- não ria! Essa é uma foto séria! – disse ela sorrindo.
- O que? – ele continuava a sorrir – Então eu não posso sorrir se quiser, pra tirar essa foto? Como quem diz “não olhe agora...”?
- E tenta não olhar pra câmera, tá? – disse ela, tirando a câmera da frente do rosto.
- Hum, só fui natural.
- Só não me olha assim – Ela voltou a apontar a câmera para Vitor.
Ele sorria. Ela tirou outra foto. Lentamente, ele ficou sério, enquanto ela tirava ainda outra foto.
- Então... Tu tens alguém? – ele perguntou, finalmente.
- Que pergunta. A escravidão foi abolida faz um tempo, sabia?
Ele voltou a sorrir, dessa vez meio sem graça.
- Ah, tu diz algo como um namorado? - ela disse, rindo alto - Não. Eu sou casada, tenho dois filhos.
Passou a mão no rosto dele, afastando pouco do cabelo que cobria os olhos. Ele estava sério novamente.
- só brincando. – ela disse ainda sorrindo. – e tu?
- Bom, eu tenho um marido, mas nenhum filho, ainda.
Ambos riram, ele bebeu um gole do café já meio frio, e voltou a fitar a caneca. Rosa ficou olhando pra ele. Lentamente, largou a câmera do lado da mesa, e se levantou. Ele levantou os olhos enquanto ela se aproximava. Ainda sorrindo, ela voltou a afastar o cabelo do rosto de Vitor. Aproximo-se, e eles se beijaram.
**
- Eu quero três filhos – disse ele.
Ela riu alto. Voltou o rosto na direção dele. Ainda suava um pouco. Os narizes de ambos tocaram-se.
- Tu sabes que isso não vai durar pra sempre, não é? Quero dizer, eu não quero te magoar, ou aos nossos filhos, mas...
Ficaram sérios.
- Eu sei. De verdade. Só quero ter certeza de que está tudo bem contigo também.
Ela abaixou o rosto, ele beijou-lhe a testa.
- Eu não quero ir... Mas, digo... Eu preciso voltar pro hotel, só paguei a semana passada, e ainda preciso acertar pra ficar essas últimas duas semanas...
- Porque ficar num hotel. Fica aqui, comigo.
- Sério?
- Claro. Isso é ridículo. Quero passar o maior tempo que der contigo. A gente já tem passado a maior parte do tempo juntos, de qualquer forma!
Ela voltou a sorrir, de um modo meio triste. Ele passou os dedos pelo rosto dela, depois desceu pelo pescoço. Quando chegou à clavícula, eles voltaram a se beijar.
**
Ele abriu os olhos, e a viu. Com uma blusa verde-água, terminando de amarrar o cabelo em uma trança. Ficou olhando seus movimentos, enquanto sentava ainda sonolento, na cama. Ela o vira pelo espelho, mas nada disse.
- Tu não precisa ir.
- Sim, preciso – Ela disse sem parar de arrumar a trança, diante do espelho. – nós já falamos sobre isso – Rosa terminou de atar a ponta da trança, mas não se virou, olhando Vitor pelo espelho.
- Só fica – Ele insistiu.
Ela riu amarga.
-Eu fiquei tanto quanto tinha planejado. Eu tenho uma vida pra tocar em Porto – Ela disse, enquanto arrumava as últimas roupas dentro da mala.
- Tu podes refazer a vida aqui, comigo. Tu sabes que eu posso manter nós dois por um tempo, até tu arranjares um emprego. – esperou uma reação que não veio, da parte dela. – Ou tu não queres ficar?
Ela riu pelo nariz – Claro que quero! Porque tu achas que eu passei contigo essas três semanas? – ela agora realmente ria.
- Bom, eu não sei, porque tu ficaste?
Ela parou de arrumar a mala. Ficou séria e voltou-se pra ele.
- Se tu realmente precisa me fazer essa pergunta, então eu não tenho uma resposta que vá te satisfazer.
**
A mulher, de cabelos negros e longos abraçou-o pela cintura.
- Oi, beibe. Desculpa pela demora.
Ele girou o corpo, passando o braço por sobre a cabeça dela, e então a beijou, brevemente, enquanto correspondia o abraço.
– Não, tudo bem. Pronta pra irmos?
- Uh-hum. Só vou pegar minha bolsa. Desliga o CD, por favor?
Ela se virou e saiu pela porta, na direção do quarto. Vitor ficou olhando enquanto ela se afastava, depois foi até a mesa e desligou o CD player. Ela passou pela frente da porta da cozinha, na direção da porta de entrada do apartamento, ajeitando os óculos de aros grossos. Vitor, ainda parado na frente da geladeira, voltou sua atenção para a foto, uma última vez, e então a seguiu, para a porta.
A fotografia na porta da geladeira mostrava o busto da dona do apartamento. Cabelos pretos e lisos até os ombros emoldurando o rosto sorridente com pequenos olhos negros sob óculos com aros largos e usando um cachecol listrado. No fundo, havia pessoas andando a beira d’água. Entre elas, uma mulher, com uma bolsa com um formato peculiar, o cabelo claro jogado sobre o ombro em uma trança, olhando para a lente com um sorriso maroto.