quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O Amor e o Machado

Eu sempre acreditei no amor, mas também que o amor não acreditava em mim. Não que eu seja um cético - veja bem, eu acreditava no amor! - mas sempre houve em mim um certo cinismo, uma pontada de descrença quando ouvia as pessoas falarem sobre o amor. Elas falavam nele de uma forma tão idílica, fervorosa, quase como um dos mistérios da fé. Era sempre cantado em versos quase poéticos. "o amor é imortal, eterno" ou "o amor é cego, puro e besta". E eu não conseguia acreditar que qualquer coisa que beire o sagrado e inspire poesia possa ter qualquer interesse em mim.

Assim, segui minha vida, acreditando que o amor existia, de alguma forma completamente inescrutável, provavelmente muito diferente das descrições dele que eu já ouvira, mas que, de toda forma, fosse como fosse, ele não tinha o menor interesse em mim - ou, mais precisamente, ele não acreditava em mim da mesma forma que eu não acreditava nele.

Até que um dia, enquanto cortava lenha, por mera distração acertei o amor com uma machadada. Uma machadada bem dada, diga-se de passagem. Daquelas que pegam em cheio e não deixam dúvidas sobre os resultados. E eu soube, ali, que era o fim. Acreditando ou não nele - ou ele em mim - eu havia matado o amor.

Me ajoelhei ao seu lado e vi o amor dar seu último suspiro, num gorgolejo de sangue, fitar meus olhos por um instante em uma incredulidade assustada, como quem pensa "como tu pode ter feito algo tão estúpido como me matar com uma machadada descuidada?" e então ficar ali, inerte, numa poça de sangue.

Por um momento fiquei ali, pensando se devia ligar pra polícia. Pros bombeiros. Pra algum amigo ou ex-namorada. Contar pra alguém o que eu fiz. Enquanto o amor jazia ali no chão, eu me sentia um assassino.

Mas então, refleti com meus botões: Se ele nunca tinha dado as caras por aqui, ninguém nunca tinha me visto em companhia do amor, se eu nem acreditava nele - e todos sabiam que não acreditava sequer que ele acreditava em mim! - por que eu avisaria alguém que ele morreu?

Assim, peguei meu machado e golpeei o amor até ele ficar em pedaços bem pequenos. Abri um buraco fundo, ao lado daquele onde tinha enterrado meu primeiro gato, que morrera anos antes (de causas naturais, até onde eu sei; certamente não por causa de uma machadada), e fui jogando ali os pedaços do amor. Sentia uma pontada de tristeza por ter matado o amor, admito, mas o sentimento se foi quando terminei de tapar o buraco.

Depois disso, achei que era o fim. Que não haveria mais amor no mundo, pelo menos pra mim. Afinal, mesmo sabendo, agora, que o amor definitivamente existia, eu também sabia que tinha matado ele.

Então, uma noite, por baixo do som do fogo, numa noite particularmente gelada de inverno, ouvi um barulho lá fora. Peguei meu machado e fui verificar. Vasculhei o pátio com aquele sentimento estranho de quem já teve que lidar com ladrões, que sabe que pode se ver frente à frente com uma encrenca mas que tem tudo sob controle e sabe o que está fazendo. Mas, pra minha surpresa, lá estava o amor. Usando um casaco pesado, uma manta colorida e brincado com uma das minhas gatas!

Enquanto eu olhava, incrédulo, o amor sorriu e correu pros meus braços, e me deu um aperto forte, pra garantir que havia voltado. E eu soube, então, que o amor era mesmo imortal, como haviam me dito!

E então me desvencilhei do abraço, dei um passo pra trás, olhei bem no fundo dos olhos do amor, e, por puro despeito, dei outra machadada nele. E picotei seu corpo, e enterrei os pedaços no mesmo lugar de antes.

Mas além de imortal, o maldito amor também é incansável. Não importa quantas vezes eu tenha dado machadadas nele - e foram várias, até hoje - ele sempre volta.

O estranho é que, apesar de eu sempre reconhecer o amor, toda vez que ele aparece outra vez, ele sempre é diferente. Toda vez. As vezes é risonho, as vezes sério, moreno, castanho, tem olhos azuis, verdes ou negros. E toda vez que eu dou uma machadada nele, eu sei que ele nunca mais será daquele jeito quando voltar. E apesar de isso me dar sempre aquela pontada de tristeza quando estou jogando seus pedaços naquele buraco ao lado de onde enterrei meu primeiro gato, também me traz uma sensação de expectativa, de não saber se ele vai mesmo voltar da próxima vez, e se voltar, qual a cara que vai ter.

E sim, eu sei, hoje, que ele sempre vai voltar.

E essa é minha relação com o amor: Ele com sua insistência imortal, eu com meu machado ímpio.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

His Dark Materials - The Golden Compass

His Dark Materials. Essa série, que já teve até uma adaptação pro cinema, nunca me chamou atenção. Provavelmente porque eu só descobri ela depois do filme que adaptou o primeiro livro - e que, na verdade, não me impressionou muito. 

Mas, como o filme tem elementos interessantes - e todos sabemos que livros quase sempre são melhores do que suas adaptações pra cinema - resolvi escutar. 

E, obviamente, tive uma grata surpresa!

Eu lembrava vagamente do filme, e em várias passagens do livro, consegui fazer conexões com imagens que tinha na memória, o que foi interessante. Não lembro muito do filme, mas aparentemente ele segue, ao menos em linhas gerais, a história do filme. Apesar de eu não lembrar exatamente dos conflitos entre a protagonista e o tio dela, e de lembrar da "vilã" de uma forma mais caricata. 

Obviamente, no entanto, o livro tem muito mais sutilezas e sub-tramas interessantes, e também uma série de conflitos que eu definitivamente não lembro de ter visto no filme. O autor toca em questões de política, sexualidade, maturidade e principalmente fundamentalismo religiosos que, certamente, não estão presentes no filme. De fat, há uma enormidade de informação pra absorver no livro, e tenho certeza que a maioria dos temas vistos aqui serão aprofundados nos próximos dois livros - e pelos quais estou ansioso!

Uma das características que eu gostei é que o livro se passa em uma "versão alternativa" do nosso mundo, durante a era vitoriana. Há várias referências à locais reais (como Londres) , religião e costumes (a passagem da bíblia sobre o pecado original que aparece no livro é simplesmente preciosa), que de forma alguma ficam deslocados em relação aos elementos de fantasia adicionados por Pullman. De fato, o livro é tão bem construído que parece que aquela é a realidade verdadeira e nós vivemos em uma realidade paralela meio remendado!

Além disso, ele audio teve uma característica bastante distinta de todos os outros que escutei até agora: Ao invés de apenas um narrador, cada um dos personagens é interpretado por um ator diferente! A primeira vez que a voz do narrador é substituída por uma garotinha - que interpreta a protagonista - eu pensei "Nossa, esse cara é MUITO BOM! Levei alguns segunds pra me dar conta que não, não era o narrador fazendo vozinha de criança... E admito que foi bastante interessante escutar várias vozes diferentes ao longo do livro. Gosto de um único narrador, mas foi uma surpresa bastante interessante! 

Uma rápida questão com relação ao nome do livro: No original, o livro se chama Northern Lights, mas quando foi levado pros Estados Unidos, foi renomeado The Golden Compass. Eu gosto do título original, mas considerando que cos outros dois livros fazem referências à itens, admito que preferi a versão americana. Não faz muita diferença, mas enfim! 

Leitura fortemente recomendada! É um livro divertidíssimo, com uma trama concisa e uma série de elementos bastante interessantes e bem amarrados! 

domingo, 13 de novembro de 2016

The Redemption of Althalus

Esse audio book me causa um certo conflito de opiniões. Ele conta a história de Althalus, um ladrão, trapaceiro, gatuno, enrolador e ocasionalmente assassino (quando a situação exige) abençoado com a maior sorte do mundo, o que lhe garante a fama de ser um dos maiores ladrões que já existiu. Essa fama fez com que ele fosse contratado para roubar um artefato misteriosos de uma casa igualmente misteriosa, à beira do fim do mundo. Essa é a premissa básica do livro, magistralmente construída ao longo de seus primeiros capítulos.

Por um lado, achei absolutamente fascinante como os Eddings conseguiram me fazer simpatizar tanto com um criminosos contumaz como Althalos. Não costumo gostar de personagens ardilosos, particularmente os criminosos. Mas Althalos é tão bem construído que ao final do primeiro capítulo, mesmo sabendo que as coisas não podiam ser assim tão simples, eu já estava torcendo por ele.

Além de um protagonista que tem tudo pra ser extremamente interessante, a história conta com um gato falante e uma casa única, com vários conceitos bastante interessantes - se não originais - em um romance de fantasia que definitivamente fazem o leitor querer ir adiante na leitura.

O narrador do livro Hayard Morse é excelente. Apesar de suas vozes femininas não serem particularmente brilhantes, ele adiciona não só diferenças de tonalidades aos personagens que está narrando mas também adiciona sotaques e, pelo que pude perceber, nunca se perde com relação à "quem-fala-de-que-jeito". Espero ouvir mais audios dele (ele narrou alguns livros do Bernard Corwell, então acho que devo encontrar com ele mais vezes por aí).

Infelizmente, no entanto, o livro tem alguns problemas.

primeiro, o número de localidades e principalmente coadjuvantes (eu consigo lembrar de umas 20 personagens relevantes pra trama assim, num piscar de olhos) fazem com que seja extremamente difícil conseguir manter todas as informações bem organizadas. Isso é particularmente verdade com relação à audio books. Se estivesse lendo um livro, provavelmente teria começado a anotar nomes de localidades e personagens assim que o quinto ou sexto nome de cada fosse mencionado. Mas como geralmente escuto enquanto estou praticando alguma outra atividade (como ir de um lugar ao outro, desenhar ou cortar grama) isso é impraticável. Assim, além de ter me atrapalhado com o nome de vários personagens coadjuvantes (que, pra piorar, as vezes têm mais de um nome!) ainda por cima é muito difícil se apegar a qualquer um deles, já que eles não tem desenvolvimento suficiente ao longo do livro pra serem mais do que um simples conceito ("Ok, esse aí é o clérigo", "Ah, essa é a bruxa", "Hum esse é o chefe do clã que gosta de cerveja - ou é o que gosta mais de dinheiro...?").

Finalmente, como o próprio título do livro diz, essa história é sobre a redenção de Althalos. Assim, depois de construir o personagem e fazer o leitor simpatizar com ele, o resto do livro trata de descontruir o personagem! Muitas vezes, alias, de formas paradoxais e sem muito sentido. Cheguei ao final do livro com a impressão de que ele não tinha se redimido, mas sim colocado seus servições à disposição de uma causa, e só.

É um livro longo (foram 27 horas de audio) e cheio de informações, com uma trama interessante, mas com sub-tramas demais e principalmente um excesso de personagens e informações. Eu diria que é um bom livro, mas definitivamente indicaria para ser lido ao invés de escutado - e de preferência com um mapa do cenário e um bloco de anotações para os nomes dos personagens à mão!