sexta-feira, 29 de junho de 2012

A Mão Esquerda da Escuridão



Um dos livros mais difícies que eu já li, apesar da leitura extremamente fácil. Sem galanteios, de uma concisão extremamente elegante, a obra de Ursula K. Le Guin é um estudo antropológico, filosófico, psicológico e político de um planeta alienígena, refletido magistralmente na nossa própria sociedade.

Le Guin nos leva ao planeta Inverno, (Gethen para os nativos) através dos olhos do explorador Genly Ai, cuja missão é agregar pacificamente esse mundo a uma união planetária soberana. Assim como no plano político de 1969, ano em que o livro foi publicado, Gethen está dividido em duas grandes nações: Karhide, uma representação do mundo ocidental liderado por um rei e Orgoreyn, o lado oriental e orientado para um governo pseudo comunista. A missão de Genly se inicia em Karhide, mas depois do que parece uma rejeição por parte do governo, ele parte para Orgoreyn, onde a máquina política parece mais simpática aos planos de Genly, ao menos até perceber-se que governos totalitários, alienígenas ou não, dificilmente são confiáveis.

Mas o que há de realmente interessante em Gethen é seu povo. Humanóides de aparência tão semelhante à nossa que Ai pode se passar por um deles, mas com uma característica física única: desprovidos de uma sexualidade definida, os gethenianos são andróginos, o que os torna desprovidos, na maior parte do tempo, das distrações sexuais e o dos impulsos sentimentais ou questões ligadas à relacionamentos. A sexualidade aflora apenas durante um curto período mensal de "cio", ou “kemmer”, onde dependendo das condições, o getheniano pode desenvolver tanto características masculinas como femininas. Essas características fazem com que parecem frios, distantes, lógicos, serenos, e propicia o desenvolvimento de uma sociedade onde o indivíduo busca o status social, mas todos são tratados como iguais, e a sobrevivência da comunidade é mais importante do que as necessidades do indivíduo.

O primeiro desafio de Genly Ai é justamente o de interagir corretamente com uma sociedade como essa, sem distinção sexual e com uma política isolacionista. Uma sociedade que o trata como um “pervertido”, já que mantém permanentemente sua sexualidade definida, em perpétuo “kemmer”. E há ainda a dificuldade de entender o lento desenvolvimento de uma sociedade cujo ponto principal da cultura, a base religiosa é o conceito de "nusuth", ou "não importa". Um conceito semelhante ao de algumas religiões orientais humanas, mas ainda mais forte e arraigado na cultura getheniana, que dita que nenhum esforço deve exceder seu resultado final, e nenhuma ação que não tenha um objetivo claro e proveitoso deve ser tomada.

Uma das características mais interessantes do livro, em termos de narrativa, é o fato de que cada capítulo é contado por um narrador diferente, e sempre com um tom de curiosidade alienígena, de incompreensão. As vezes temos o próprio Genly ai como narrador, as vezes relatos de lendas do planeta contadas por exploradores anteriores e ainda mais ignorantes sobre os gethenianos e as vezes temos os diários de Estraven, que geralmente tratam da natureza de Genly. Esse olhar estrangeiro sobre todos os pontos da história criam uma interessante atmosfera de verossimilhança, já que estamos continuamente vendo alienígenas olhando uns para os outros entre si, como nós mesmos fazemos quando encontramos pessoas de culturas diferentes da nossa. E Le Guin cria uma cultura extremamente rica, sólida, concisa e lógica, com diferentes nuances, com questões políticas e sociais muito bem atreladas entre si.

Estraven, alias, é um dos personagens mais perfeitos que já li. Suas intenções e ações, apesar de extremamente verossímeis, são extremamente alienígenas para o leitor e fazem com que seja impossível classifica-lo como herói, vilão, mártir, inimigo ou qualquer outro estereótipo padrão.

Outra característica extremamente acertada, e que torna o romance extremamente vívido, é o fato de que não há um antagonista proclamado. Não há inimigos óbvios. Genly luta contra a cultura, a a distopia burocrática, a fisiologia dos gethenianos, e finalmente contra o próprio clima inóspito e mortal do planeta.

Ursula K. Le Guin cria um romance rico, que nos faz pensar sobre nossa própria cultura, nossa eterna busca por respostas, nossa incapacidade de nos desatrelarmos da nossa sexualidade no que diz respeito às nossas relações sociais, e nos leva a refletir sobre a mais simples e mais complexa das questões que permeia nossa sociedade: as diferenças entre os gêneros só existe nos olhos daqueles que não percebem que somos todos unica e simplesmente humanos.


“A luz é a mão esquerda da escuridão
e a escuridão é a mão direita da luz…”

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