sexta-feira, 13 de julho de 2012

Escolha

É primavera!

Nessa época do ano, posso sentir a vida renascendo por debaixo da mortalha branca do inverno. Sim, todos sentimos isso, alguns mais forte, outros mais fraco. Mas eu sou uma sacerdotisa. Eu sinto não só a vida renascendo nas flores que se abrem, nos pássaros jovens e nos insetos que voltam a voar ao redor. Eu sinto isso da terra, subindo pelos meus pés quando ando descalça na grama. Sinto nas mãos quando toco um tronco de árvore. Sinto no rosto quando bebo um gole de água do rio. A vida flui em mim, para mim. E, em breve, ela fluirá de mim.

Neste ano, durante as festividades, eu vou escolher alguém.

Eu sei, porque eu ví, num sonho. Somos ensinadas a entendê-los desde jovens, e muitos dos meus sonhos são claros como lembranças recentes.

É primavera, e estamos todos felizes nos preparando para o festival do plantio. É uma época feliz porque estamos finalmente todos reunidos fora de nossas casas, longe do frio e nos preparando para a fartura que estamos plantando agora.

Todos estão aqui. Aqueles de quem eu gosto mais e menos, os que eu amo, e até algumas pessoas que eu poderia odiar. Mas hoje, nós estamos todos felizes demais para simplesmente não nos amarmos todos mutuamente, sem restrições.

Porque é primavera, e o inverno passou.

As garotas mais jovens trançam galhos de flores azuis, amarelas e vermelhas, em grinaldas que saem presenteando para quem passa por elas. Elas gritam e sorriem e parecem fadas dançando ao som dos raios de sol. Os meninos mais jovens brincam com os cordeiros que acabaram de nascer, e enquanto eu e as moças mais velhas ajudamos a preparar e carregar os bolos e pães da festa, os rapazes carregam madeira e fazem jogos de força, enquanto olham para nós, tentando chamar a atenção.

E estão conseguindo.

Para mim é fácil sentir o pulso que vibra poderosamente entre nosos grupos, com as quase mulheres tentando parecer grtaciosas e os quase homens tentando parecer mais másculos. É natural, e já vi isso muitas vezes, nos últimos anos. Este ano, no entanto, é diferente, porque eu própria sinto o mesmo impulso, pela primeira vez.

Minha mãe diz que é a idade. Que chegou minha hora de deixar de ser criança e me tornar mulher. Creio que ela está certa. Meu corpo tem me dado avisos à esse respeito, e é chegada a hora. Essa é a ordem natural das coisas.

***

O inverno se foi, e é hora de semear.

Um punhado de homens está comigo trabalhando na semeadura. É um trabalho leve, depois de arar os campos. Mas o sol da primavera é pesado para nós, acostumados com o frio das geadas e com o sol esqualido que perfurava as densas neblinas invernais. Mas estamos todos felizes, falando alto e até mesmo cantando. Hoje a noite celebramos o festival da primavera, e as mulheres nos esperam com

pães e cerveja, e nós dançaremos, beberemos e celebraremos o retorno da vida.

Eu digo a mim mesmo que o ciclo da vida é como o das estações, e que a morte que o inverno trás é substituida pelo renascer da vida na primavera. Eu deveria saber disso melhor do que todos os homens ao meu redor, pois sou o druida da vila. Mas não consigo sentir o prazer que outrora traziam os pequenos momentos como este, de semear, de estar na companhia dos meus irmãos e irmãs, de saber que a primavera chegou.

Meu coração pesa.

No inverno anterior ao último, perdi minha esposa para o frio. Eu disse meu último adeus à ela na noite dos mortos, e a ví feliz, do outro lado do véu que separa os mundos. Ela seguirá o rumo natural de sua roda, e eu deveria fazer o mesmo. Mas até agora, não fui capaz.

quem sabe nesse festival? Deixarei na mão dos deuses decidirem.

Por agora, devo me concentrar no meu trabalho.

***

É primavera!

O festival teve inicio pouco antes do cair da noite quente e seca, deliciosa. Uma leve brisa deixa o ar carregado de aromas de flores, vinhos e bolos. Tudo tem cheiro e gosto doce! Todas as pessoas riem e se divertem. Eu danço com as moças e rapazes da minha idade, rio alto e bebo muito. Conheço ervas e sortilégios para que o hidromel não turve meu raciocínio, mas nessa noite não usei nenhum. Quero me embriagar sentir o pulso da vida fluindo livremente pelo meu corpo!

Alguns homens tocam seus tambores e sopram suas flautas, e uma das sacerdotisas mais velhas dedilha uma cítara magistralmente. A música começou tímida, mas agora é tocada de forma quase frenética, com os próprios músicos saltando e dançando! Se estão fora de compasso uns com os outro, ninguém nota. O ritmo de um músico mais persistente leva os outros a segui-lo, e no fim todos estão tocando mais ou menos a mesma melodia.

E ao seu redor, nos cantamos e dançamos!

Eu estou leve com a cerveja, mas mantenho uma parte dos meus pensamentos lúcida o suficente para procurar. Eu sei que escolherei alguém hoje, e  estou curiosa para saber quem será. Há muitas moças e rapazes aqui hoje. Alguns daqui, outros das vilas próximas, e alguns de locais mais remotos, pequenos demais para terem festividades adequadas. Estamos todos eufóricos, e alguns já formaram casais, alguns mais timidamente, outros de forma mais declarada. Outros parecem não se importar com isso, e simplesmente dançam e bebem.

***

É noite.

Assisto de longe enquanto os homens e mulheres da minha vila, e alguns de vilas vizinhas, cantam e dançam ao redor do fogo, embalados pela cerveja. Sinto o cheiro doce dos bolos que as moças prepararam para a festividade, mas me falta vontade de experimentá-los. O próprio hidromel tem um gosto insípido esta noite.

Me sinto deslocado no meio de toda essa alegria. e só não me recolhi porque os homens veriam como mau sinal se o druida não estiver presente nas festividades de primavera até o amanhecer.

Foi numa destas festividades que a conheci, alguns anos atrás.

Não tivemos filhos.

Me sinto tão vazio.

Talvez seja hora de escolher um dos jovens para tomar o meu lugar e entrar na floresta para não mais...

***

Alegria!

Danço e rodo, e grito as letras das músicas que conheço numa voz totalmente bêbada, e rio junto com os outros jovens ao meu redor! Todos sabem o que estamos fazendo, e essa liberdade é tão boa! Minha cabeça está leve, e já não me importo em procurar, o que certamente me levará a uma escolha acertada! Somente danço e giro, de mãos dadas com os rapazes e moças que ainda não encontraram seus pares, e deixo a alegria de estar simplesmente vida tomar conta do meu corpo, do meu coração!

E danço!

***

Frio.

Agora uns poucos jovens, ainda frenéticos, dançam perto do fogo, ao som de músicos incansáveis. Reconheço apenas uma jovem sacerdotisa entre eles.

Decido me aproximar, pra esquentar meu corpo cansado.

Alguns dos rapazes e moças acabarão solitários esta noite, como sempre acontece, e escolherei um deles para ser meu novo aprendiz, amanhã. Por hora, apenas verei seus rostos mais de perto.

***

Cansaço.

Finalmente ele toma conta de mim. Meu corpo reclama do ritmo frenético, e eu acabo caindo sentada perto de alguém. Olho para ver quem é, e me surpreendo com o rosto do nosso druida. Ele é um homem jovem mas por causa das coisas que aprendeu e viveu, tem um semblante duro e um ar triste que fazem com que pareça um ancião.

Tento levantar, mas minhas pernas não me obedecem.

Acabo abraçado com ele.

E então, eu a vejo!

***

Cansaço.

sento em um tronco perto do fogo. Mal tomo um gole do hidromel que quueceu nas minhas mãos, a jovem sacerdotisa que dançava entre os outros jovens cai ao meu lado.

Ela está completamente bêbada. Tento estender a mão para ajuda-la a levantar, mas ela parece não notar. Cambaleia, e acaba caindo sobre mim.

e então, eu a vejo!

***

Seu cabelo é muito escuro, e as roupas brancas estão sujas e manchadas. Ela olha na minha direção, mas não diretamente pra mim.

É uma ameaça.

Exijo que minha mente se foque nos meus ensinamentos, em busca de uma resposta.

ela vem rápida e brutal, quando percebo que ela está olhando na minha direção, para o druida!

***

É uma visão fugaz. Eu vejo a jovem de cabelos negros me encarando por um momento, mas sei que ela está aqui por mim.

Mas sequer tenho tempo de refletir sobre isso.

Seu hálito tem cheiro de cerveja. Os lábios estreitos são rígidos, tensos. A língua é aspera. E o gosto é doce e inesperado como um raio de sol em meio à chuva.

Ela draga meus sentidos. Confuso, correspondo como posso, tentando reter aquele momento para sempre. O solo some sob meu peso.

Então, tão repentino como chegou, ela se vai. Se afasta. Eu assisto ela dançar por entre os músicos, como uma fada. E me perco naquele momento.

***

Eu faço o que é preciso.

Não, eu faço o que desejo!

Afasto o frio com um beijo, uma promessa. Aproveito cada instante daquele momento, insuflando paixão, e recebendo o mesmo em retorno.

Sinto que movo sua roda em uma nova direção, e sinto que a roda da minha própria vida é movida na mesma direção.

Abro os olhos e ela não está mais lá. O encantamento foi quebrado.

Me afasto, sentindo uma confusão nova tomando meu corpo.

É Mágico!

***

É Mágico!

***

Estou confusa!

***

Estou confuso!

Sinto a minha roda da vida girar, veloz, numa nova direção!

Como quando um punhado de hervas aromáticas é lançada sobre as brasas de uma fogueira quase morta, eu me sinto reacender!

***

Vou sentar perto das moças que não encontraram um par. Todas riem, pois apesar de tudo, estamos todos felizes.

apesar da confusão, estou feliz!

Olho na direção do druida. Nossos olhares se encontram.

Eu fiz minha escolha.

***

Eu a fito, longe, junto das outras moças. Sinto um calor suave, uma paixão que, mansamente, se aninha em mim. Eu me sinto escolhido.

E aceito sua escolha.

***

Eu estou apaixonada.

***

Eu estou apaixonado.








Toda a vida recomeçou.

É primavera.

E a roda das nossas vidas gira.

2 comentários:

  1. Simpático conto de Ostara; as descrições o tornam sensorial, mas o foco narrativo, sem dúvida, é o que mais se destaca, na medida em que é apresentado várias personagens protagonistas com narrativa em primeira pessoa - conferindo ao conto um aspecto lírico em função das impressões das personagens - que podem ser caracterizadas pelo eu-lírico que cada uma apresenta.

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    1. Ah, é bom um comentário sobre alguém que faz uma boa idéia do que estou falando!
      Agradeço muitíssimo as tuas observações sobre a questão narrativa do conto. Me sinto satisfeito em ter conseguido passar a idéia de maneira aparentemente eficiente!
      Mas é claro que, considerando-se que eu escrevi sobre os dois pontos-de-vistas, por mais que eu tenha sido capaz de me distanciar, no final só há um eu-lírico no conto. Eu eu-lírico e um monte de interpretações...

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