terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Gato Amarelo


Deitado na sua caminha de cachorro, a única coisa que era realmente dele - além, claro, de todo o pátio e dos humanos que moram nele - o Gato Amarelo foi enterrdo no dia que morreu pela útima vez, vésperas do reveillon de 2025. Exatamente dois anos depois da última vez que ele morreu, na véspera do reveillon de 2023. 

Sim, o Gato Amarelo morreu dois anos atrás, provavelmente sua sexta vida, tendo perdido um bom pedaço da cabeça e do pescoço em alguma briga felina numa dessas noites de verão do fim do ano. Mas, naquele dia, ele resolveu que ia perder a vida dentro do meu atelier, em cima de uma confortável caminha de cahorro amarela, que literalmente nenhum dos outros gatos dava a menor atenção. 

Pro azar dele, antes de fechar o ano, eu vim dar uma olhada nas gatas que vivem no atelier. 

Vejam, o atelier é onde as gatas comem e dormem, mas ela tem uma portinhola pra rua que permite que as gatas (são cinco delas) entrem e saiam à vontade - a menos, claro, que alguma delas decida dormir na rampa de acesso da portinhola, o que causa tumultos constantes..

Mas, naquela última noite de 2023, não houve tumulto. Todas as cinco gatas olhavam fixamente para o enorme Gato Amarelo, em seus extertores de morte, sentado na caminha de cahorro amarela que ninguém dava a menor atenção. Com uma ferida imensa, que deformava o rosto até o peito, cujo icor negro tinha se espalhado pelo pelo ao redor, dando a impressão de que se tratava de um animal que havia cavado a própria sepultura de dentro pra fora. As larvas de verme, o fato de ser possível ver parte do crânio do animal através da ferida, e o fedor à carniça que ele deixava no ambiente só aumentavam a impressão de que eu olhava pra uma criatura morta-viva. Ou, mais especificamente, um bicho morto que tinha decidio que aquela caminha de cachorro amarela que nenhum outro gato dava atenção era o lugar correto pra morrer, mas se recusava a aceitar a derrota e estava ali, ainda vivo, embora morto. 

E assim, nessa recusa de se entregar, tivemos que montar uma armadilha pra capturar o Gato Amarelo, porque mesmo morto (embora não admitisse) ele se recusava a deixar de ser um animal arisco. 

No fim, captura, levamos o moribundo as pressas pra um veterinário. Este nos deu poucas expectativas - aalgo como 7 ou menos em 2d6. Era provável que sobrevivesse, mas tinha boas chances disso não acontecer. 

Depois de alguns dias de tratamento intensivo, e mais alguns dias de recuperação pra que passasse por uma castração, ele voltou pras Gaylands, com instruções de receber pomadas regenerativas todos os dias - ele tinha perdido um bom naco de carne - e ficar longe de encrenca. Por dois meses, ele ficou trancado em uma sala de contenção de 3x5, acompanhado de sua caminha de cahorro amarela que nenhum outro gato dava atenção, recebendo comida, água e remédios mas se recusando a deixar ser tocado, o que era preocupante porque não conseguiamos passar a tal pomada regenerativa nele. 

Ainda assim, mesmo tendo perdido a útima vida, o Gato Amarelo sobreviveu. A cicatriz, em carne viva, foi fechando, e no final virou uma cicatriz pouco notável - exceto pela orelha meio deslocada e com pouca mobilidade do lado direito. 

E então, soltamos o gato novamente nos campos das Gaylands. 

Todas as manhãs, ele miava pedindo comida nas ruínas da Taverna do Valhalla. Todas as noites, ele voltava para dormir na sua caminha de cachorro amarela que nenhum outro gato dava atenção. 

Todas as vezes que eu alimentava ou que ele chegava pra dormir, eu oferecia a minha mão pra ele cheirar. Ele cheirava, mas não permitia ser tocado. 

Até o fim do inverno de 2023. Numa fatídica noite em que veio dormir na sua caminha de cahorro amarela que nenhum outro gato dava atenção, eu ofereci minha mão pra ele cheirar, e ele devolveu uma cabeçada carinhosa. esfregou o cucuruto na minha mão, e deixou eu alisar seu queixo. 

Eu nunca vou esquecer aquele dia. Vejam, eu sempre quis um gato amarelo, e pedia todas as manhãs e todas as noites pra ele deixar eu lhe dar algum carinho. Era tudo o que eu queria em troca da atenção e dos ccuidados desprendidos: a chance de lhe dar um cafuné. 

E ele me deu a oportunidade. 

Depois disso, seu comportamento mudou completamente. Me esperava na porta todas as manhãs, se esfregando com vontade nas minhas pernas todos os dias, enquanto eu distribuia ração para as outras gatas. Então subia na mesa de desenho e exigia esfregadas na cabeça, ronronando, antes de comer. Durante o útimo ano e meio, esse era meu ritual diário. 

Vai ser bastante difícil entrar no atelier em 2025, sabendo que nunca mais vou ter essa recepção. 

Sim, porque depois de dois anos, a última vida do Gato Amarelo expirou. Ontem, no fim da tarde, notamos que ele respirava com dificuldade. Chamamos um veterinário, que fez um exame, e sugeriu internar. Era o plano pra hoje. Já tinhamos falado com uma clínica - a mesma onde ele foi operado e castrado dois anos atrás - e assim que a Bianca chegasse do trabalho, ao meio-dia, iamos direto leva-lo. Ainda cedo, essa manhã, o veterinário passou aqui, administrou uma injeção, mas não conseguia dizer qual era o problema. Exames eram necessário. Levamos isso em conta na internação. 

Mas jamais teremos os exames. Não passaremos o reveillon angustiados enquanto ele está internado. A sala de contenção onde ele ficaria quando voltasse não vai ser limpa pra receber o Gato Amarelo de volta. 

Nessa amarga manhã do útimo dia de 2024, enquanto fazia um chá pra sentar na sala de conteção com o Gato Amarelo enquanto esperávamos o retorno da Bianca, ele morreu. Sem briga, sem selvageria. Morreu encostado na porta, talvez esperando que eu voltasse pra lhe fazer companhia, talvez desejando passar seus últimos momentos no capinzal das Gaylands. Não sei. E me doi que nenhuma dessas coisas tenha ocorrido. Quando abri a porta, ele já estava estirado, sem reação. Corri pro veterinário - que mora atravessando a rua - que fez massagem cardiaca nele, mas foi em vão. 

O Gato Amarelo me deu quatro anos de sua vida. Dois deles rondando o pátio das Gaylands, aceitando comida mas se escondendo pelos cantos, meio ano de uma convivência forçada - no começo, ao menos - e depois distante, mas me deu seu melhor ano e meio no final. Com cabeçadas, ronronadas, carícias, miados estridentes pra anunciar sua chegada, exigências de atenção e um ritual matinal que me fazia sorrir todos os dias. 

Ele vai fazer muita falta. 2025 vai começar muito, muito menos feliz sem ele aqui.

Mas vai ficar a lembrança de um gato arisco que se tornou meu maior companheiro. Da útima vida que ele tinha, e que escolheu compartilhar comigo. E isso eu vou lembrar ao longo do próximo ano, e de todos os anos seguintes, até que a minha útima vida também se vá. 

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