sábado, 9 de julho de 2016

De Bárbaros e Bruxas

Um Jarl chega às terras de outro num fim-de-tarde sombrio, e com a promessa de uma noite tempestuosa, é convidado à sentar-se e beber da hospitalidade de seu anfitrião.

Tendo recebido seu irmão-de-armas, após os preparos necessários, ambos sentam-se no grande salão, solitários exceto por alguns barris de cerveja e um fogo já meio morto. Lá fora, a noite ruge em ventos negros e relâmpagos pálidos.

Depois de degustarem alguma comida, ambos acendem seus cachimbos para acompanhar suas cervejas, e o anfitrião, depois de ouvir intensamente a noite lá fora por alguns minutos, começa:

- Ah, meu amigo... As madrugadas são o lar das malditas coisas que vêm pelas brechas formadas pelos ângulos da mente desperta.

- A mente desperta... Qual foi a maldita coisa de agora?

- Uma sombra. Um espectro. Não sei bem definir. Uma coisa. Odeio lucidez demais.

- Tu viu? Na tua torre?

- "Ver"... Hum... Não tenho certeza se ver seria o verbo correto. Não acho que ela teria um verbo correto.

- Lucidez é uma coisa útil, às vezes, mas um bom andarilho da madrugada sabe que a noite traz coisas interessantes á nossa cabeça. A criatividade é uma das maiores beneficiadas!

- A criatividade cria medos e dúvidas. Sombras. Eu não queria nada disso. Não queria estar lúcido. Eu quria algo que eu pudesse cortar, apunhalar, golpear. Algo que sangrasse e lutasse de volta.

- Com o monte de cerveja qe tens aqui, não é difícil deixar de estar lúcido!

- De fato! Chifres e cascos! Acho que vou mesmo me dar um pouco de esquecimento etílico!

- Coisa do demo!

Ambos riem e canecas de cerveja são servidas e bebidas. O anfitrião volta a falar:

- Meu inimigo tem meu sangue. E ele conhece o campo de batalha. Mas eu tenho ao meu lado o fator surpresa. O exército dele é maior, e eu acho que sou taticamente mais apto. Mas estou em dúvida. Não sei se devo ou não atacar. Sempre odiei atacar outros nórdicos... Decisão difícil.

- Atacar outro nórdico pode não ser legal. Se você for perder homens do teu exército, pior ainda. Eles precisam fazer a colheita!

- É no que estou pensando.... Vou perder homens demais....

- Quando não sobravam mais inimigos os nórdicos sempre brigavam entre sim... O grande defeito deles.

- É que nesse caso, o ganho é imenso!

- O orgulho e a sede de sangue dos deuses...

- Um tesouro que não pode ser medido em palavras! Hum... Sede de sangue.... Será isso?

- Uma vez tinha um cara que se chamava Beowulf, e ele queria uma coisa rica e poderosa que não podia ser medida em palavras... E, para encurtar a história,  ele se fudeu no final.

- Malditas lendas nórdicas!

- Pois é...

- Recuar, recuar.... Tão perto. Tão perto.... Maldita sombra.

- Ivar Ivarson morreu em ampla vantagem numérica e moral... O descontrole e a raiva não deixaram ele pensar direito e ele sucumbiu ante a coragem e determinação de Uhtred Ragnarson, que era mais jovem e não estava precisando recuperar PVs como ele!

- Háh! A diferença é que meu inimigo é jovem, tolo, despreparado e está mole pelos anos sem guerra!
 E ele nem sabe que eu estou aqui!

- Sempre há um risco. Não sei. Um ealdormen não deveria dar conselhos ou instigar guerras e batalhas que não lhe afetam. Prefiro não opinar. Queira ou não queira batalhas trazem morte.
 E perdas.

Ambos bebem mais um pouco, imersos em seus próprios pensamentos. Até que o visitante retoma a palavra:

- Tu quer roubar a mulher desse cara? Para isso não precisas de guerra, mas de um bom sceadugengan!

- Porque sempre se trata de mulheres?

- Porque nórdicos gostam de mulheres... O deus cristão não gosta, mas Frey tem Freya e Odin e Thor são os guerreiros fornicadores... Aesires, Vanires, todos gostam de desembainhar as espadas!

Ambos gargalham e bebem longamente, antes do anfitrião, com um sorriso lupino no rosto, voltar a falar:

- Só um companheiro de fé me poderia por pra rir numa situação como essa!

- Ninguém entra no castelo com suas armas. E se tu usar teu privilégio de usar a tua porque estás no teu castelo, estás abusando e ferindo tua própria honra.

Ambos bebem em silêncio por um momento, até o visitante exultar com emoção:

- Wyrd Biõ Ful aered!

Há o choque de canecos de um brinde amistoso, e depois de grunhidos de satisfação e mais cerveja ser sorvida e as canecas serem enchidas novamente, o visitante continua:

- Há dias tu vem falando de uma mulher misteriosa e só diz: ela, ela ela... Tu vai roubar a mulher de quem?

- Chifres e cascos! Eu tenho mesmo falado nisso?

- Consideravelmente!

- Esse é exatamente o problema, meu bom amigo.... Eu não posso falar quem é, e no entanto....
 Não consigo pensar em outra coisa.

- Não sendo a minha, as lanças dos meus homens vão continuar imóveis, escoradas nas muralhas cinzentas da minha fortaleza!

- Não te preocupes! Se eu me visse desejoso das tuas terras, preferiria cortar minha garganta antes de atacar!

- Mas guerras são guerras e se tuas tropas se moverem tu vai provocar derramamento de sangue...

- Ah....  O calor da cerveja.  Eu precisava disso.  minha vista turva, e eu me sinto mais leve!

- Mulheres são como cerveja! Turvam o olhar dos homens, meu amigo!

- Garn e Fenris, eu tenho mesmo falado nela?  Digo... Tenho falado tanto assim?

- Não sei. Eu notei, e não sou nenhum Sherlock Holmes... Mas temos falado bastante. Quando uma mulher habita nossos desejos ela sempre aparece, em qualquer assunto. É como RPG!

- Isso é preocupante.  Me disseram que ela tem perguntado sobre mim. Mas eu acreditava que estava... Incólume? Segregado? Se eu tenho falado nela, imagino que deve ficar evidente quando estou com ela! Cifres e cascos! Isso é deveras preocupante!

- Ragnar era um senhor forte e imponente, dono de uma frota de três navios, governante das colinas, um líder generoso que dava muitos braceletes... E ele descartou Kjartan, que não parecia um aliado em potencial. Wyrd Biõ ful aered... Ganhou um inimigo mortal. Deixa um bom contingente guardando tua fortaleza e te afasta! Reúne alguns bons homens e vai saquear ou caçar javalis no sul. Espairar as idéias. Esquecer essa mulher... A paz sempre é valiosa e só percebemos seu valor quando entramos em guerra!

- Wyrd Biõ ful aered Se tiver que ser, será.  Tens razão.  Mas a maldita sede de sangue.....

- É Loki tentando nos aprontar! Na verdade conheço dois senhores do norte com os quais acho que não deverias mecher, pois os outros senhores não veriam isso com bons olhos: Struik e Bebaarde.
 O resto eu não conheço, e não ligo. Se um homem possibilita que roubem sua mulher é porque não tem dado a ela o que merece... E guerra é guerra. Se tu precisa... As fiandeiras aprontam!

- Tu achas mesmo que eu seria capaz de levantar minha espada contra qualquer um desses dois?
 Struik é um irmão de armas! A esposa dele é como uma irmã pra mim!

- Não conheço tua relação com eles. Conheço muito pouco os dois, infelizmente.

- Bebaarde é um senhor fraco. Vastos territórios e se empenha em batalhas contra outros povos. Inclusive já entrou em conflito com o Struik, certa feita. E tive que mover minhas tropas. Não gosto dele, nem sei se ele é bem visto.

- "É provérbio meu que, tendo excluído tudo que é impossível, aquilo que fica, por mais improvável que pareça, é a verdade."Conan Doyle - A Coroa de berilos. - Sherlock holmes. Pensando assim, as únicas mulheres com quem sei que trocas correspondências são a Heks e a Rozen. Não citei as duas por mal. Foi só uma leitura superficial.

- Estranho tu veres a Heks trocando correspondências comigo, já que em geral nos falamos ao vivo.

- Ah, então foi nas correspondências com a Moer. Pessoas envolvidas, enfim. Essas cartas são comentadas por todos, não sou um bisbilhoteiro!

Ambos gargalham amistosamente, e o anfitrião retoma a palavra:

- Minha vida é um livro aberto, meu caro! Nada do que pudestes encontrar nos meus alfarrábios mancharia minha honra!

- Que bom! Quando os fatos estão expostos a todos não precisamos de explicações para desembainhar a espada em público quando ferirem nossa honra! Mas fiz loucuras de amor bem toscas e tenho plena convicção de que até mesmo os homens mais maduros podem fazer merda quando estão apaixonados. E isso é legal porque mostra nosso lado primitivo. Quando Cernunnos quer que pensemos com a cabeça de baixo, meu amigo, sai da frente por que vão ser apenas chifres e cascos!
 Todas as leis, medos, vergonhas, responsabilidades desaparecem e só dá ELA.

- Esse é exatamente o problema. Os anos me ensinaram a agir com a cabeça. E eu sei que sou bom fazendo isso.  Mas nesse momento, só tenho vontade de desembainhar a espada e derramar sangue!
 E que hajam baixas! Que morram meus homens!

- Tu tem que decidir se tu quer a MULHER ou o SANGUE. São duas coisas diferentes, embora não pareça.

- So que depois de uma guerra muito sangrenta, a vitória pode ter mais gosto de derrota e cinzas do que o doce do hidromel.

- Exatamente! Beowulf de novo!

- Malditas lendas nórdicas! Mas me diz, o que queres dizer com mulher e sangue serem coisas diferentes? Acaso crê que eu derramaria sangue apenas pela luxuria da batalha?

- Lembra do Ragnar oferecendo a coroa da Nortúmbria pro Uhtred? Ele queria! Sede de poder! Mas sabia que como rei só teria compromissos e chateações. Como guerreiros pode ter as mulheres, as bebidas, a liberdade, o regozijo da batalha!  "Mas nesse momento, só tenho vontade de desembainhar a espada e derramar sangue!"

- O problema é que a coroa me interessa. Uma sala cheia de cerveja que me engorde e me deixe lasso, sem precisar voltar pro campo de batalha vez após vez. Cansei de errar e campear guerra. quero a paz gorda, quero a rotina chata de receber os senhores e seus pedidos, quero doar os braceletes que já conquistei, ao invés de encher meus braços de metal até que eles fiquem... ...pesados demais até pra levantare uma arma! Minha sede de sangue é por uma fortaleza forte, uma terra rica e uma vida chata!

- Te entendo! Cara, eu te conheço há uns anos, mas há pouco tempo te conheço como amigo próximo e só agora percebo algumas coisas. E uma delas é que andas bastante preocupado com a hora de essa terra rica e vida chata chegarem... E eu entendo essa tua preocupação, mas queria te dizer para não ficar tão preocupado. Nós vivemos numa sociedade fudida que tá pouco ligando para o nosso tipo de gente, então não precisamos seguir as regrinhas deles. Naquela época em que tu falava das Crônicas Saxônicas nas tuas missivas e ficou triste com o lance com a Liefje, tu escreveu uma carta muito triste e depressiva, cheio de "constatações" sobre si mesmo e foi muito triste ler aquilo. Mesmo que eu não te conhecesse eu não gostaria de ler. E o que eu posso te dizer é que tu não é aquilo, cara. Tu não é nenhum looser do jeito que tu te descreveu e a nossa hora chega. Relaxa! Se tu realmente quer essa mulher, vai lá e pega ela para ti! Mas não te preocupa demais. Deve estar parecendo que estou viajando na maionese e saindo do assunto, mas esses assuntos tem a ver um com o outro e eu queria falar isso e nunca tive oportunidade. Tu é foda, cara. Ninguém é melhor que ninguém nessa porra. Um castelo chato com uma rainha no trono ao lado não é melhor que a liberdade de andar para lá e para cá. Na paz temos sede de sangue, na guerra temos sede de paz. A gente sempre vai ver problema nas coisas e encher a cabeça de preocupações. É normal. Como já disse o cara aquele: a vida é o que acontece enquanto fazemos planos! Enjoy! Happy fun! Braceletes também são bons!

- Tu sabes que acabas de te contradizer de forma épica, certo?

-  Talvez, mas eu disse o que queria: Um trono chato com senhores vindo pedir coisas não é melhor ou pior que uma guerra incessante por ocupar esse trono. Então faz o que tu queres, é tudo da lei.

- Das sagas nórdicas pra bruxaria moderna de Crowley!  isso tá muito interessante!

- É... Porque os malditos padres não deixaram sobrar nada da bruxaria antiga.

- Valeu, Jakhals. De verdade. Eu na verdade ando bem feliz, por esses tempos... E essa foi só uma noite de melancolia sem lua numa infindável sucessão de noites de lua cheia! Mas foi bom trocar essas palavras! E se fosse fácil assim, eu ia lá e pegava essa mulher, mesmo. Mas admito que tenho muito, muito medo do que isso pode gerar.

- Eu sei, mas ali ainda surgiu uma reminiscência daquele pensamento de "eu tenho que casar e ter uma casa e filhos" e eu só queria ressaltar que tu vai ter isso, se quiser, mas que não precisa te preocupar!

- São os anos pesando nos ombros...

E em silêncio, ambos beberam até o barril estar seco e seus pensamentos estarem cheios, e então se retiraram, como sombras, e deixaram o forro morrer e a noite de tempestade se acalmar em uma manhã nublada.

(a conversa é uma transcrição ipsis literis de um encontro real, ocorrido há alguns anos atrás, e apenas os nomes dos envolvidos - e daqueles citados - forma alterados)

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