segunda-feira, 7 de março de 2022

Fogueira de acampamento

 A região tecnicamente era parte da área de preservação, mas não era mencionada em qualquer guia de turismo ou mesmo no site do parque. Isso era provavelmente devido ao fato de ficar muito longe das trilhas geralmente usadas por visitantes, acessada por uma picada pouco usada que só se mantinha aberta graças ao fato da região ser seca demais pra que a vegetação fosse capaz de reivindicar a trilha quase esquecida. 

A região era erma, sem qualquer atividade humana em um raio de vários quilômetros em qualquer direção, e o ambiente agreste a elevado fazia com que fosse possível ver com clareza todo o ambiente ao redor. Seria um local perfeito para trilhas e acampamentos, se não fosse tão remoto. 

A picada terminava eventualmente em uma pequena plataforma de pedra coberta por cimento já integrada ao ambiente ao redor devido à erosão e que, em algum momento, fora um estacionamento. A posição era pouco mais elevada do que o terreno ao redor, permitindo uma vista fantástica de toda a região até as colinas mais distantes, meio azuladas devido à distância. A área estava praticamente vazia, exceto por uma solitária caminhonete estacionada logo no começo da área de cimento. O furgão verde-abacate se aproximou lentamente, passando pela caminhonete e seguindo até o fim do que ainda sobrava da plataforma de concreto que agora cobria uns 30 metros do terreno, e parou despretensiosamente quase como se estivesse pronta para seguir viagem. Mas seu motor desligou e um silêncio estático se apoderou da paisagem. 

Passados alguns minutos, o homem alto, barbudo e vestido como um guerrilheiro perdido desceu do furgão de fibra de vidro, fazendo o veículo oscilar para o o lado do motorista e de volta à sua posição normal depois que o corpanzil do sujeito aliviou o carro de seu peso considerável. Era um sujeito alto, com um tronco em formato de barril e uma expressão de quem não gosta de qualquer outra pessoa. Carregava um embornal de couro atravessado sobre um dos ombros e uma faca em uma bainha tática amarrada à perna.  Além disso, tinha apenas um chapéu de lona, que colocou sobre a cabeça depois de examinar a região ao redor. Se aproximou da caminhonete estacionada no outro extremo da plataforma de concreto e deu uma olhada de longe. Os pneus estavam vazios e a cor era difícil de perceber debaixo da camada de poeira. Os vidros estavam todos no lugar, e as portas pareciam fechadas. Não parecia um carro roubado ou abandonado, mas certamente estava aqui há muito, muito tempo. 

Aparentemente perdendo o interesse no carro, o homem desceu da área de concreto por uma rampa que, em outros tempos, talvez tivesse sido usada para chegar à alguma trilha, atualmente inexistente, e se pôs à caminhar, em um passo confortável na direção de uma plataforma natural, alguns quilômetros adiante. A medida que os passos faziam os pedriscos no chão estalarem sob suas botas, quebrando o silêncio que imperava, algumas cigarras decidiram que a teatralidade da cena tinha cumprido seu propósito e começaram a cantar com vontade. 

Tinha andado cerca de um quilômetro quando parou com uma careta no rosto. Um cheiro de carniça lhe atingiu subitamente, de modo bastante inesperado. Olhou ao redor, para o céu, à procura de aves carniceiras, mas como antes, não viu sinais de vida. inspecionou a área, e notou um pequeno brilho no chão, alguns metros adiante. Se aproximou e viu o pequeno relógio empoeirado, cujas pulseiras não estavam mais no lugar. Pegou a faca de caça e afastou o pó de cima do vidro. Marca 11:56. O homem deu mais uma olhada ao redor, e perdendo totalmente o interesse no relógio extraviado, seguiu seu caminho. 

A caminhada durou umas poucas horas, e nenhum outro evento chamou a atenção do homem de tronco de barril, que parou algumas vezes apenas para tirar uma garrafa de metal de seu embornal, beber todo o líquido de dentro de forma sedenta enquanto apreciava a paisagem, e acomodar a garrafa junto da outra duzia de garrafas que preenchiam quase totalmente a bolsa e voltar a caminhar. A subida na plataforma natural foi um pouco mais difícil do que ele esperava, e atingiu o topo do plato ofegante. Com as mãos nos joelhos, olhou a região, e percebeu que o topo era quase totalmente plano, como se uma grande divindade ancestral tivesse tirado uma fatia da terra com uma grande faca de manteiga. O sol estava perto do horizonte, e se pretendia produzir algum tipo de acampamento, esse era o momento de começar. Caminhou mais alguns passos na direção do que achou que era o centro do platô, procurando uma boa área para fazer uma fogueira, e sorriu ao ver uma área limpa de arbustos adiante, onde algumas pedras baixas haviam sido organizadas em um semicírculo no centro do qual alguns carvões esquecidos ainda descansavam em uma área de fuligem. Largou o embornal nas proximidades do antigo acampamento e se pôs a catar lenha ao redor. Havia uma profusão de pequenos arbustos secos ao redor, o que tornou a tarefa extremamente fácil e simples, e em cerca de meia hora estava sentado na beira dos carvões velhos organizando uma pequena pirâmide de gravetos, com uma pilha de galhos secos ao lado. Teria fogo suficiente para algumas horas, embora duvidasse que fosse possível manter a fogueira abastecida a noite toda. Mas essa não era a intenção. Os últimos raios de sol estavam se esvaindo no horizonte enquanto o homem ascendia a pequena pilha de galhos no começo de uma fogueira e admirava a paisagem deserta ao redor. A noite estava quieta, com poucos sons de animais, e a noite sem lua permitia uma vista magnífica das estrelas que começavam a pontilhar o céu. 

Sentado à luz da fogueira, o homem-barril abriu o embornal de couro e de dentro dele tirou, de forma metódica, todo o conteúdo, como uma criança abrindo uma caixa de brinquedos. Uma dúzia de pequenas vasilhas de metal, achatadas e com tampa de rosca, que separou em dois grupos distintos, uma contendo cinco e outra sete garrafas. Depois retirou o último conteúdo da bolsa: um embrulho de lona bege atado com cordão cru. Pegou as cinco garrafas separadas e voltou a acondicionar dentro do embornal e, por fim, pegou uma do outro grupo, balançou levemente, abriu e bebeu o líquido de um gole, estalando a língua quando terminou. Rosqueou a tampa e colocou a garrafa junto com as outras no interior do embornal de couro. Finalmente, retirou o chapéu de lona e o depositou sobre as vazilhas vazias de metal. Se concentrou então no embrulho de lona, rompendo o barbante e desembrulhando o conteúdo, que era constituído de um naco considerável de carne defumada. Com um sorriso satisfeito, rolou uma das pedras de perto do fogo e depositou o pedaço de carne sobre ele, que chiou em contato com a pedra quente e rapidamente espalhou o aroma de carne no ar . Se concentrou, então, em fitar as estrelas que agora dominavam o céu sem lua e apreciando o termo "via láctea" com uma satisfação quase infantil. Depois de alguns minutos de contemplação, voltou sua atenção para o pedaço de carne que perfumava o ambiente, e usando sua faca para tirar pedaços apreciáveis, devorou rapidamente a refeição. Quando termionou, rolou a pedra que lhe serviu de fogão improvisado de volta para junto do fogo, adicionando alguns galhos secos logo após isso, fazendo o fogo crepitar. Pegou uma das seis garrafas de fora do embornal e entornou o líquido garganta abaixo. 

Enquanto acondicionava o recipiente vazio dentro da bolsa de couro, ouviu o vento levantar ao longe, num farfalhar de galhos que assoviando entre as pedras antes de atingi-lo. Trouxe consigo uma sensação morna ao invés do frescor usual do vento noturno. Mas a sensação estranha não foi tudo o que trouxe no entanto. Farejando o vento que balançou as labaredas da fogueira, o homem barbudo fez uma careta ao sentir o fedor que sentira mais cedo, perto do relógio extraviado. Quente e podre, como o um animal atropelado na estrada cozinhando no asfalto quente, o cheiro fez com que o naco de carne tentasse sair das entranhas onde descansava e foi apenas com algum esforço que o homem impediu que isso ocorresse. 

A fogueira crepitou com o vento repentino, lançando fagulhas e picumãs no ar, e o homem apreciou o pequeno espetáculo da pequena procissão de luzes alaranjadas que subiam no ar, quase como estrelas se despendendo do firmamento em uma dança espiralada. A medida que o vento foi diminuindo, as centelhas foram se apagando junto com o cheiro pungente que ainda pairava no ar, como uma memória ruim, mas não ao ponto de causar mal estar. Quando as chamas da fogueira se acalmaram, tudo ao redor parecia mais escuro do que antes. Olhando ao redor com desconfiança, o homem tencionou os músculos involuntariamente, percebendo a mudança no ambiente. Lentamente olhou para o céu e percebeu, com preocupada, que não conseguia mais ver nenhuma estrela. 

O mundo parecia agora se resumir à fogueira e as poucas coisas que sua luz tocava. As cinco garrafas de metal que cintilavam refletindo as chamas, o surrado embornal de couro,  a pequena pilha de galhos secos, o circulo de pequenas pedras e o guerrilheiro perdido. Além, o mundo acabava em uma escuridão completa e impenetrável. Onde antes era possível ver os contornos de touceiras ressequidas e a beira do plato elevado banhados na luz das estrelas, não havia mais nada. Não havia mais horizonte, e onde antes morros distantes se destacavam contra o céu noturno pontilhado de estrelas, só havia breu. O mundo acabava além dos cinco metros de luz produzida pela fogueira de acampamento. 

Além da luz das estrelas, o vento parecia ter levado consigo também todos os sons. Além do estralar dos galhos queimando no fogo, era possível ouvir apenas a respiração compassada sob a barba do homem. O farfalhar do vento ao longe havia cessado completamente, e com ele todos os pequenos animais que, até então, cantavam algo tímidos, suas melodias noturnas. E no ambiente ainda pairava o fedor como se algo tivesse morrido nas proximidades.

Foi então que o homem ouviu o pigarro. 

O homem segurou o fôlego instantaneamente. Não estava sozinho no platô. Os pelos de seus braços se eriçaram, e ele lentamente virou a cabeça na direção do som e viu um pequeno reflexo na escuridão. Depois outro. Alguma coisa estava logo além do alcance da claridade da fogueira. Observando. Os dois reflexos estavam à pouco mais de um metro do chão, e eram a única coisa visível na escuridão além da fogueira de acampamento. 

- Vai embora - disse o homem com uma voz alta e clara - não tenho mais nada aqui. Enquanto falava, o homem se levantou e, sem tirar os olhos dos dois reflexos na escuridão, puxou com o pé a pedra-forno de perto do fogo, e chutou na dos pontos brilhantes. A pedra rolou pela terra seca, sendo consumida pela escuridão. Os olhos se abaixaram alguns centímetros, como se a coisa tivesse abaixado a cabeça. O homem se moveu lentamente ao redor do fogo, tentando deixar a fogueira entre ele e os reflexos na escuridão, mas eles se moveram com ele. O homem parou e fitou os olhos percebendo que, embora seus próprios passos fizessem considerável barulho esmigalhando os pedriscos no chão, a coisa além do fogo não produzira som algum ao se mover.

Lentamente, o homem se abaixou e pegou uma das pedras que circulavam o fogo. Era um calhau quase grande demais para ser segurado pela enorme mão do homenzarrão, que ele arremessou como uma bocha na direção dos reflexos na escuridão. Embora fosse difícil julgar a distância devido à escuridão, a pedra foi certeira entre os dois pontos brilhantes. Mas não acertou nada além do chão, e rolou para longe. Os olhos se moveram de um lado para o outro lentamente depois que o som da pedra rolante despareceu. Fosse o que fosse, não estava com medo.  O homem então lentamente tirou a faca da bainha a ergueu lentamente, estudando a direção onde o reflexo da chama na lâmina polida ia, direcionando para onde a coisa além da luz da chama estava. Os olhos se abaixaram, num movimento de compressão, como o de um felino se preparando para saltar, e o homem parou o movimento da lâmina. 

- Vai embora! - gritou. 

Um som gutural, como alguém gorgolejando com algo viscoso veio da direção dos olhos. O homem, por sua vez, cerrou os dentes e arregalou os olhos que agora cintilavam à luz do fogo. 

- Então vem, sevandijas mentecapto! Pula aqui e tenta a sorte! VEM! - Berrou a plenos pulmões, e deu um passo na direção da coisa. 

Mas os reflexos na escuridão não estavam mais lá. O homem olhou ao redor, mudando de posição, virando de uma lado para o outro, tentando encontrar alguma pista de onde seu oponente poderia ter ido. Lentamente, sem conseguir encontrar nada ao redor, foi se acalmando. A tensão nos músculos diminuiu, os braços descansaram. Passou a mão no cabelo e percebeu que, embora a noite estivesse fria, suava. Secou a mão nas calças, mas continuou olhando ao redor, com o semblante ainda tenso, a faca ainda firme na mão. 

Uma coisa arremeteu da escuridão, e o atingiu na parte de trás da cabeça. Com um urro, girou sobre o próprio eixo, golpeando o ar com a faca em um movimento amplo. Deu um passo para trás, arfando, dentes serrados. Na escuridão, logo além da luz da fogueira de acampamento, os dois familiares reflexos estavam parados à cerca de um metro do chão. Percebendo algo diferente no ambiente, olhou rapidamente para baixo, e ali, entre ele e os olhos na escuridão repousava um coturno de couro. Se abaixou, lentamente, com a faca alta entre ele e a coisa, e pegou a bota surrada. Se aproximou da fogueira e se permitiu alguns segundos para examinar o calçado. O cadarço não existia mais, e o couro envelhecido estava rasgado e rachado, com manchas escuras em toda a superfície. Depois de um momento de confusão, percebeu que as rachaduras não eram no couro em si, mas sim na camada de substância marrou que cobria o couro. Sangue seco. Em grandes quantidades, velho e abundante. O dono do calçado havia se atolado em sangue - ou a bota havia se banhado no sangue dele. 

O homem suspirou profundamente e jogou a bota na direção dos olhos na escuridão enquanto se abaixava para pegar alguns galhos secos e joga-los no fogo. Depois foi até as cinco vasilhas de metal ainda descansando no chão, pegou uma, desatarraxou a tampa ainda com a faca na mão e bebeu todo o conteúdo. Jogou o recipiente vazio dentro do embornal aberto. 

- Então, o que vai ser? - o homem disse em uma voz desinteressada, voltando a fitar os reflexos na escuridão, que não haviam se movido - Vai ficar aí, esperando que eu fique sem lenha, e me atacar na escuridão, hein? - deu uma risadinha sem vontade - Um predador histrião. 

Voltou o olhar para a fogueira. A coisa na escuridão rosnou seu gargarejo baixo, quando o homem voltou a fitar seus olhos e trocou a faca de mão e sorriu sardonicamente. Com um movimento veloz, se abaixou e pegou um toco pouco mais longo que os outros, que propositadamente havia deixado apenas parcialmente dentro das chamas, e ainda agachado arremessou o archote improvisado na direção da criatura. A chama rosnou no ar enquanto girava no ar, e embora não tenha sido um arremesso perfeito, a chama iluminou a coisa por um segundo antes dela disparar em direção à escuridão. Era imensa. Longo e sinuoso, usou os membros dianteiros para se impulsionar para trás, e depois correu nas quatro patas para longe, numa corrida algo desengonçada. Era escuro, também. Na verdade, o homem percebeu enquanto via a coisa correr para longe, era tão escura que se destacava na escuridão ao redor, permitindo que seus contornos fossem percebidos, ainda que borrados. Tinha uns três ou quatro metros de comprimento, e era muito mais alta nos ombros do que a cabeça fazia acreditar. Os olhos - e de fato os reflexos na escuridão eram olhos - ficavam no centro de uma cabeçorra redonda e disforme, que o homem não conseguiu ver bem, mas lembrava algo simiesco. A cabeça, por sua vez, se ligava ao corpo por um pescoço longo e fino, que se inclinava para baixo enquanto a criatura corria. De pé, com o pescoço ereto, deveria chegar facilmente à cinco metros de altura. 

O homem permaneceu parado, agachado junto ao fogo, enquanto a chama da tocha improvisava se extinguia. Tentava processar o que vira. Pelo comportamento até o momento e considerando a bota ensanguentada, definitivamente não era amistoso. E não gostava de luz. Enquanto se levantava lentamente, ouviu o gargarejo grosso vindo de trás de si, e ficou consciente do fedor apodrecido mais uma vez. Fez uma careta de nojo e voltou a encarar seu adversário. Ficaram ali, se encarando, por algum tempo enquanto a fogueira consumia mais alguns galhos. 

Então, à distância, um cão latiu. Os olhos desapareceram na escuridão, mas o homem ainda conseguia ver o contorno da coisa ali, logo além da luz da fogueira. A cabeça levantada no ar, como se estivesse... Farejando? Repentinamente a coisa correu para o fundo da escuridão deixando o homem solitário no seu pequeno mundo-fogueira. O homem, por sua vez, guardou a faca na bainha e cofiando a barba, olhou ao redor. Espalhou os galhos que havia recolhido com o pé, e suspirou. Não iam durar muito. Se abaixou, pegou mais uma das vasilhas e de um gole, bebeu seu conteúdo. Colocou com as nove outras que jaziam vazias dentro do embornal. Pegou um galho seco e colocou no fogo. à distância, ouviu o cão latir novamente, dessa vez freneticamente. E logo em seguida, ouviu os latidos se tornarem ganidos até repentinamente sessarem por completo. 

Mais uma vez, o único som na escuridão era o estralar dos galhos sendo consumidos pelo fogo. Enquanto se concentrava no silêncio, o homem respirava lenta e ritmicamente, quase sem produzir qualquer som. O que fez com que o som de alguma coisa sendo atirada no chão logo atrás de si soasse alto como uma batida de tambor. Se virou por reflexo, desembainhando a faca e olhando com horror para a pilha de pelos cinzentos e entranhas na expectativa que pulasse sobre ele tentando abocanha-lo. A massa disforme lembrava muito pouco um cão. A mandíbula, a parte da frente do pescoço e as pernas dianteiras não existiam mais. A caixa torácica parecia ter sido espremida para fora, com pontas de costela saindo por debaixo do couro e ao longo do rasgo gelatinoso que havia sido o peito do animal. A cabeça estava revirada para trás, amassada contra as costas do bicho, com os dentes superiores parecendo uma espécie macabra de adorno. O sangue fluía da garganta aberta em um fluxo viscoso, e uma certa quantidade de vapor ainda se desprendia do corpo do animal enquanto os órgãos e entranhas esfriavam. 

- Criatura abjeta - fez uma careta de nojo na direção da coisa na escuridão - cuspiu na direção da criatura, e em seguida chutou o o cadáver do cão em direção à escuridão. A massa de carne não chegou a sair de dentro do círculo de luz produzido pela fogueira. O gorgolejar veio novamente, longo e baixo, e uma... Mão, ou algo similar a uma mão, mas completamente errada (dedos longos demais, com juntas em excesso) lentamente se arrastou para fora da escuridão na ponta de um braço impossivelmente fino e retorcido. Era como se uma tarântula tivesse sido amarrada na extremidade de um galho agora saísse para capturar uma presa, se agarrando lentamente ao redor da cauda do cadáver canino e puxando violentamente a massa de carne disforme para dentro da escuridão. O gorgolejar só sessou depois que o corpo desapareceu no escuro, como se a luminosidade, de alguma forma, ferisse a criatura. Em seguida, uma série de sons de carne sendo rasgada e triturada. 

O Homem sentou ao lado do fogo, jogando mais um galho nas chamas. Não havia muito mais combustível para o fogo. Pegou uma das três vasilhas de metal que ainda estavam fora do embornal, abriu a tampa de rosca e bebeu o conteúdo todo, enquanto fitava a criatura na escuridão. Limpou a boca com o braço, e colocou o recipiente dentro do saco de couro. Olhou para o céu à procura de estrelas, na esperança de ter um ponto de referência. Qualquer ponto de referência. Acima dele, só havia escuridão. Voltou à encarar os olhos logo além da claridade da fogueira. 

Ficaram, assim, encarando um ao outro na escuridão silenciosa por um longo tempo. Cada vez que o homem jogava mais um graveto no fogo, ouvia um pigarro vindo do escuro. Ambos pareciam satisfeitos em apenas aguardar e encarar um ao outro. Eventualmente, no entanto, as piscadas do homem com tronco de barril começaram a ficar mais longas. Estava com uma expressão cansada, olhos encovados e escuras olheiras. Esticou a mão e pegou a penúltima das garrafas ainda fora do embornal.  Colocou no colo e levou a mão, desenroscando a tampa, que caiu no seu colo. Mas a vazilha ficou ali, imóvel. A cabeça do homem pendeu para a frente com a barba se acomodando sobre o peito largo e seus olhos fecharam. 

O homem sacudiu violentamente quando um pigarrear soou atrás de si muito, muito próximo. A fogueira estava apenas em brasas, e quando o homem levou a mão na direção dos galhos secos, viu a mão-tarântula se fechando ao redor dos últimos gravetos e retornar à escuridão, atrás de si, enquanto um fedor quente e podre exalava diretamente atrás de sua nuca. Atingido por um súbito surto de adrenalina, se deitou ao lado da fogueira e começou a soprar as brasas conseguindo apenas um leve brilho avermelhado, suficiente para delinear a cabeçorra da criatura o encarando do outro lado da fogueira. num ângulo bizarro, já que jazia com o rosco encostado no chão. Uma bocarra impossivelmente larga, que parecia dividir a cabeça da criatura ao meio, começo a abrir lentamente, deixando ver os dentes que refletiam o brilho alaranjado das brasas na saliva doentia que os cobria. Seguiu soprando as brasas freneticamente, até que, repentinamente, uma minúscula chama apareceu em meio as brasas da fogueira de acampamento, ao mesmo tempo que o homem sentiu uma quantidade impossível de dedos se fechando sobre seu pulso. 

Com um sorriso maníaco, o homem girou o braço sendo segurado e agarrou agarrou pulso da criatura, formando um emaranhado de dedos em um nó bizarro, enquanto erguia o corpo com o outro braço e jogava o líquido nas brasas agora acesas, que explodiram em chamas, com o líquido inflamável respingando na criatura espalhando as chamas pelo corpo esguio que agora se retorcia em agonia, enquanto a coisa guinchava de dor. Firmemente agarrando a criatura com uma mão, o homem meio tropicando sobre as brasas em chamas sacou a faca e caiu desajeitadamente sobre a coisa em chamas, desferindo golpes alucinados enquanto gargalhava de forma delirante. A coisa flamejante tentava em desespero se arrastar para longe da fogueira de acampamento, agora nada além de uma massa de brasas esparramadas pelo chão, enquanto o homem seguia desferindo golpes incessantemente, alguns certeiros, outros pouco mais do que socos desengonçados. 

- Apedeuta! - um golpe certeiro - Nescio! - um arranhão desengonçado - Avantesma torpe! - uma estocada funda - Parvo! - mais um golpe preciso - Não percebeu... - um soco violento - ...que essa noite... - um corte largo - ...era a presa! - enfiou a faca na garganta da criatura, e sem qualquer equilibrio, caiu por sobre o corpo que fumegava arfava espasmodicamente. O homem ergueu o tronco, montando sobre o peito do monstro enquanto arfava ruidosamente, apoiado no cabo da faca firmemente enterrada no chão através do pescoço macilento. 

Com o fedor de carne queimada misturado ao cheio pungente de podridão que a criatura exalava, o homem ergueu a cabeça na direção do céu e soltou um profundo suspiro. Quando abriu os olhos, a via láctea se espalhava novamente pelo céu, gloriosa. fitou o firmamento sarapintado de estrelas por vários minutos, antes de se voltar para o horizonte e  ver a faixa de azul claro que se formava sobre as montanhas. Ao longe, ouviu cricrilar e zumbido vindo de várias direções, e uma leve brisa afastou um pouco o fedor exalado pela criatura ao mesmo tempo que adicionou alguns sons de farfalhar de arbustos e um eventual assovio entre as curvas das rochas. Assistiu o nascer do sol por detrás das montanhas antes de se levantar. 

Pegou o pedaço de lona que usara para enrolar o pedaço de carne e limpou a faca metodicamente, antes de coloca-la de volta na bainha. Fez o mesmo com a garrafa de metal vazia que jazia ao lado do corpo da criatura - que agora, ao sol, parecia ter encolhido, murchado. Pôs a penúltima garrafa dentro do embornal junto com a peça de lona, sacou o chapéu de dentro da sacola, e depois de atravessar a alça por sobre o ombro, enfiou o chapéu firmemente na cabeça. Pegou então a última garrafa de metal e a examinou contra o sol, por algum tempo. Desatarraxou a tampa e virou o conteúdo no chão. 

- Devil's springs nunca mais! - tampou a garrafa e colocou no embornal - Exceto, talvez, para fazer molotovs... - riu fracamente. Fitou o horizonte mais uma vez, e voltou sua atenção para a criatura que jazia morta. Tinha agora se encolhido em uma posição fetal, e não passada de um metro e meio de comprimento. Cutucou o cadáver com o pé. Parecia duro. Se abaixou e experimentou erguer o corpo. Estava leve e quase não fedia mais. Quase. Colocou a coisa sobre o ombro, como se fosse um tronco, e se começou a caminhar de volta para o furgão. Deu um suspiro quando passou pelos restos mutilados do cão, alguns metros longe dos restos da fogueira. 

Caminhou de volta com mais propósito do que quando chegou, aproveitando o ar revigorante da manhã e sem paradas para beber ou contemplar a paisagem. Alcançou o estacionamento antes do sol estar a pino, mas suava profusamente quando encostou o cadáver ressecado contra a chassi de fibra de vidro (agora não tinha sequer um metro de tamanho no total). Abriu a porta de trás do furgão, jogou o chapéu e o embornal em um dos bancos e de baixo deste retirou uma garrafa plástica de três litros, sem rótulo. Bebeu com sofreguidão, em seguida derramando o resto do líquido sobre o rosto e o corpo. Colocou a garrafa vazia de volta sob o banco, e de lá tirou um grande saco plástico preto, ode enfiou o corpo ressecado, que foi depositado no chão do carro entre os bancos. Fechou a parte de trás do carro, abriu a porta da frente e pegou uma bolsa do lado do passageiro de dentro da qual tirou uma muda de roupas e um par de botas praticamente iguais aos que estava usando - embora estivessem limpas e secas. Se despiu, enfiou suas roupas ensopadas e imundas na sacola, devolveu a mesma para o seu lugar no bando do motorista e vestiu a muda limpa. 

Olhou Uma vez mais para a trilha que havia feito, na direção do platô longínquo. Depois dedicou uma olhada para a caminhonete no outro extremo do estacionamento, decorando a placa. Finalmente, embarcou no furgão, ligou o motor e dirigiu em direção da civilização. Três horas mais tarde, parou em um posto de gasolina em uma rodovia, abasteceu o carro, comeu uma cohinha e bebeu um café. Finalmente, pediu um telefone, e foi encaminhado para um orelhão, de onde ligou para a polícia informando uma placa e a localização de uma caminhonete alguns quilômetros no interior de uma área pouco trafegada de um parque. 

Ninguém nunca verificou a ligação anônima, e a caminhonete ainda jaz no estacionamento em ruinas. 

*****

Algumas considerações: 

Algum tempo atrás passei a seguir alguns canais que narravam artigos da SCP Foundation - não tenho idéia de quanto essa coisa é conhecida, mas ela existe e tem uma grande quantidade de fãs mundo afora, que ampliam, desenvolvem e traduzem (inclusive pra português) a coisa toda de modo organizadamente caótico. Pra quem não conhece, vale a pena pesquisar. É uma toca de coelho interessante. 

Eventualmente, graças ao algoritmo do youtube, passei a receber recomendações de canais que narram creepypastas sem ligação com a SCP (ao menos que eu saiba), ouvindo áudios de histórias de terror/horror enquanto "descanso" entre um audiobook e outro. Até agora, nunca tinha realmente parado pra escrever nada, e honestamente, nunca achei que ia. 

Mas esses dias me deparei com um audio de uma crrepypasta chamada "campfire", que vou lincar aqui. Não é um conto particularmente inspirador, mas por algum motivo - talvez pelo final ter sido pouco satisfatório - eu fiquei pensando "e se". Especificamente "e se num desses contos, ao invez de um sujeito comum, o mostro acabasse encontrando um esquisito bem preparado?" 

A idéia, obviamente, não tem nada de original. Supernatural tá aí com sei lá, 15 temporadas fazendo exatamente isso... Mas eu decidi, como exercio de escrita (e também de tradução, em parte) escrever uma versão alternativa pra essa creepypasta em particular. Porque pareceu divertido. 

Percebam que várias passagens são traduções literais - eu realmente só traduzi o texto original do autor, na cara dura, mesmo.  Cópia descarada. Clonagem. Plágio! O objetivo era me exercitar, mesmo, não criar uma história memorável, e como eu tou dizendo aqui, os lorus são todos do autor original, Daniel Martins. 

Apesar disso, eu gostei do resultado final, e embora a intenção original não fosse publicar, eu dicidi que valia a pena. Então estou deixando aqui um aviso bem grande que eu basicamente plagiei o trabalho do Daniel Martins, copiando a idéia central e literalmente traduzindo ipsis literis várias passagens. Se gostar do texto, vai lá no link do original, dá uma avaliação pro cara, faz um comentário e sei lá, "me entrega" e diz que um brasileiro pé-rapado escreveu uma versão em português da história dele, mudando totalmente o final e transformando o troço numa fanfarronice. 

De todo modo, espero que a leitura tenha sido interessante. 

Post Scriptum: Honestamente, agora que terminei de escrever esse troço, me dei conta que seria uma história interessante do Mário, o  detetive sobrenatural que o Fábio Ochôa e/ou o Marco Antônio Collares criaram décadas atrás. 

Enfim, sei lá. 

E fiquem longe de Devil's Springs!