segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Sozinho

Nos últimos anos eu tenho pensado muito em um assunto em particular: Solidão.

Passei a maior parte da minha vida sozinho. Não essa solidão cercada de gente que muitos falam, esse isolamento do mundo que as pessoas sentem mesmo quando estão num ônibus lotado ou andando pelos centros abarrotados de gente das cidades grandes. Não, eu me refiro à solidão de fato. Imagino que isso seja bastante comum entre desenhistas - e artistas em geral - já que o desempenho da nossa atividade é naturalmente solitária. É muito difícil desenhar enquanto há distrações por perto, como pessoas, por exemplo, tirando nossa atenção do objeto de trabalho. De fato, graças à isso, eu imagino, eu acabei desenvolvendo hábitos noturnos: à noite, as chances de ser interrompido por chamadas telefônicas, visitas, pedidos de ajuda com trabalhos domésticos ou - em tempos mais recentes - mensagens eletrônicas, cai drasticamente. Se eu preciso de horas (literalmente) pra conseguir me concentrar o suficiente pra trabalhar sem essas interrupções, imagina com elas. Além disso, mesmo quando consigo me concentrar no trabalho, uma interrupção no meio do processo de desenhar geralmente manda todo o foco pro espaço, e o resultado final do trabalho geralmente não fica muito bom - de fato, eu consigo separar desenhos meus que foram feitos com e sem interrupções pela quantidade de detalhes neles.

Além disso, tendo morado em uma casa afastada da civilização, com vizinhos tão interessados em ficar sozinhos em suas próprias casas quanto eu ajuda bastante no que diz respeito à não encontrar pessoas.

Finalmente, meu círculo de amizades minguou consideravelmente nos últimos anos. As pessoas se mudaram para locais longínquos, se tornaram adultos responsáveis com milhões de coisas para fazer e tarefas que têm que ser concluídas, e graças à isso meus hábitos sociais simplesmente definharam. Até uns anos atrás, eu saia consistentemente todas as semanas para passar um ou dois dias com amigos seja jogando RPG, bebendo ou simplesmente jogando conversa fora. E, de maneira semelhante, eu recebia visitas duas ou três vezes por semana, com os mesmos intuitos sociais listados acima.

Diabos, 10 anos atrás não passava um único dia em que eu não encontrava com um conhecido pra tomar um café, fumar um cigarro, jogar uma partida de algum RPG bizarro ou mesmo pular e gritar ao redor de uma fogueira!

E é engraçado pensar que eu ainda não estou na idade de ficar contando os meus amigos que morreram. Oh, sim, já perdi alguns deles, mas foram bem poucos. A maioria dessas pessoas que eu visitava, ou que me visitavam, estão absolutamente vivas, saudáveis e constituindo família. Só que em outros lugares. Elas estão na Alemanha, em Portugal, nos Estados Unidos, em São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre, São Lourenço do Sul e, alguns, tão perto quanto Pelotas. Mas mesmo estes, ao alcance de uma visita de ônibus ou mesmo uma pedalada, estão, via de regra, muito ocupados com seus trabalhos, filhos, esposas, maridos e empresas, ou muito cansados por sua jornada semanal de trabalho ou ainda se encontrando com pessoas mais próximas, com quem o contato é mais simples e não requer um elaborado planejamento pra que seja possível uma visita.

E não, eu não acho que nenhuma dessas pessoas, por qualquer motivo que seja, traiu minha amizade ou que sejam amigos ingratos. De forma alguma. A vida anda, as coisas mudam. "A natureza da vida é mudar, tovarish", dizia um um russo conhecido meu. As pessoas se afastam porque a vida faz com que elas se afastem, e é só isso. É natural ao nosso modo de vida contemporâneo e não há nada de errado com isso. De fato, eu admito que fico feliz por essas pessoas, que foram tão longe pra alcançar o que consideravam o melhor pra si, e saíram da cidade ou do estado ou mesmo do país ou do continente pra ter uma vida melhor. Fico feliz quando um amigo me diz que está se mudando, ou que vai ter um filho, mesmo sabendo que isso certamente fará com que eu o veja com muito, muito menos frequência.

Mas, independente de ficar feliz ou não com essas pessoas, o fato imutável é que eu não consegui me adaptar tão bem à vida. Me isolei demais, me afastei demais, protelei demais visitas, consenti demais com a preguiça e com a vontade de ficar sozinho. Tanto que, agora, a solidão é, com certeza, minha companheira mais comum, quer eu queira, quer não.

Ah, sim, eu vejo gente todas as semanas. Afinal, o caminhão da xepa passa aqui na frente todo o sábado, e eu tenho pelo menos cinco minutos de contato direto com outro ser humano. Além disso eu preciso comprar ração pros meus gatos toda sexta, e troco dois dedos de prosa com o meu vizinho que vende ração nesse dia de cada semana. As vezes até temos uma conversa mais longa, enquanto eu concordo que a violência está realmente um absurdo, ou que as pessoas realmente perderam a vergonha na cara nesses últimos anos. E, na verdade, são essas conversas com o Paulo que me fazem, em geral, pensar em solidão. Paulo, sentado no seu galpão de rações, assistindo a globo durante toda a tarde, é a pessoa com quem eu mantenho uma interação mais frequente nos últimos cinco anos. Não que ele não seja um sujeito gente fina. Longe disso. Mas é terrível pensar que a pessoa com quem eu mais tenho conversado ao longo dos últimos cinco anos é alguém que me presta um serviço, e não um amigo.

Em 2016 esse paradigma foi alterado consideravelmente com a inclusão na minha vida de uma pessoa extremamente sociável e com uma família extremamente presente. Uma pessoa que preenchia muito do meu tempo - que de outra forma teria sido passado sozinho. E que, quando se afastou, repentinamente, me deixou em um vácuo de companhia que era ainda mais pesado do que a solidão anterior, justamente por ter me dado o gosto de uma vida preenchida com outra presença. Esse vácuo, essa solidão mais aguda, foi o que me fez pensar na solidão que eu sinto, e que venho sentindo nos últimos anos. E isso me tornou amargurado, aguçou minha melancolia natural, e me deixou no que eu acredito que tenha sido a borda de uma depressão. Por sorte, percebi isso a tempo, e consegui não seguir na direção errada. Entrei em contato com amigos dos velhos tempos, procurei novas pessoas pra conhecer, saí com gente que não conhecia. Algumas dessas coisas foram boas, outras, nem tanto, mas serviram pra eu perceber que ter gente ao meu redor não é só uma coisa que eu preciso pra me manter são: é algo que eu amo. Eu adoro conhecer pessoas. Ver vidas diferentes. Conhecer medos, inseguranças, sonhos, modos de pensar e entender o mundo que sejam diferentes dos meus. Esses últimos quatro meses, em que tenho entrado em contato com gente completamente nova, em que tenho procurado fazer novos contatos, novos amigos, ou me reconectar com pessoas que eu prezo, foram absolutamente fantásticos. Eu tenho tantas pessoas com quem quero conversar, ou voltar a conversar, ou continuar conversando, que meus momentos de solidão são preenchidos com uma antecipação com relação à essas possíveis conversas, ou reflexões sobre as conversas que eu tive nos últimos dias.

Sim, eu quero dividir a minha vida com alguém, e ter meu tempo preenchido com uma cônjuge e eventualmente filhos, mas enquanto isso não acontece, eu gostaria que todas as pessoas que me ofereceram um pouco do seu tempo nos últimos meses, novos e velhos amigos, que vocês fizeram muita diferença na vida desse velho Gay que está digitando toda essa baboseira pseudo-filosófica totalmente sentimentalista. Sou grato a cada um de vocês - eu tentaria colocar cada nome aqui, mas foram muitas pessoas, eu esqueceria de algumas, certamente, e não me perdoaria por isso. Vocês sabem quem são.

E que venham muitas horas de conversas regadas à café, cerveja, chimarrão, restos de churrasco, vinho vencido e docinhos de aniversário!